Ô Raça! Mais de 25 mil candidatos mudam raça declarada nesta eleição; 40% passam de brancos para negros

Ao menos 25.911 postulantes a cargos de vereador, prefeito e vice-prefeito que concorreram em 2016 alteraram a raça para esta eleição. Destes, 10.454 que se declaravam brancos agora dizem ser pardos ou pretos.

Mais de 25 mil candidatos que concorreram na eleição de 2016 alteraram a raça declarada ao TSE no pleito deste ano. Destes, 40% deixaram de ser brancos e passaram a se considerar negros.

O número pode ser ainda maior, já que os partidos têm até este sábado (26) para fazer o registro das candidaturas, o que significa que a base no TSE ainda está incompleta. Há até agora 316 mil candidatos registrados.

O levantamento feito pelo G1 mostra que 10.454 candidatos que antes se declaravam brancos passaram a ser declarar negros (a soma de pardos e pretos, segundo definição do IBGE). Juntando com os amarelos e indígenas que também passaram a se declarar negros, o número sobe para 10.779 (ou 42% do total). O maior contingente é de brancos que agora dizem ser pardos. São 9.944.

Mais de 25 mil candidatos mudam raça de uma eleição para outra — Foto: Aparecido Gonçalves/G1

Mais de 25 mil candidatos mudam raça de uma eleição para outra — Foto: Aparecido Gonçalves/G1

Para especialistas, há três hipóteses para as mudanças de classificação de raça/cor entre os candidatos: aumento de identificação/consciência, erro de preenchimento e fraude.

O ministro Ricardo Lewandowski determinou que valerá já nas eleições deste ano a divisão proporcional de recursos e propaganda eleitoral entre candidatos negros e brancos, o que pode ter impactado nas mudanças.

O professor-assistente do departamento de ciência política da Universidade da Flórida Andrew Janusz acredita que “os brasileiros estão ficando mais conscientes de sua cor”. “Embora os políticos e a população tenham passado a se declarar negros, acho que geralmente eles têm motivos diferentes. Muitas vezes políticos brancos passam a se declarar negros quando é eleitoralmente útil.”

Mas ele diz que, na população, isso também se deve a uma maior instrução e a um maior acesso das pessoas. “Quando os indivíduos recebem educação, eles podem se fortalecer e abraçar identidades negras.”

Para o professor de ciência política da UFMG Cristiano Rodrigues, a tendência é que mais pessoas negras se candidatem, de fato, neste ano. “Houve nos últimos anos vários movimentos que levaram ao aumento das candidaturas negras”, afirma. “Um deles é o efeito Marielle. Ela se tornou um símbolo e tem motivado várias pessoas negras a entrar na política.”

“Neste ano, especialmente, também temos visto a questão racial ganhar espaço na mídia e no debate público tanto no Brasil quanto fora. E há uma reação ao governo federal, que tem adotado posturas que podem ser consideradas racistas ou que levam os negros a não se sentirem representados.”

O levantamento do G1 mostra ainda que 8.365 candidatos que se declaravam pardos agora dizem ser brancos. Outros 3.319 que se diziam pardos agora se declaram pretos. E 2.559 fizeram oposto: antes constavam como pretos e agora são pardos.

Há também 294 candidatos que se declaravam pretos e agora aparecem como brancos. Outros 510 que diziam ser brancos agora preencheram o dado como sendo pretos.

Rodrigues afirma que parte pode ser explicada pelas características do próprio sistema de classificação. “O próprio sistema de classificação é fluido. Não estou dizendo que não deve ser assim. Deve. Só que isso abre precedentes para que algumas pessoas façam uso errado.”

“De preto para pardo e vice-versa não altera a classificação de negro. O que interessa para distribuição de recursos é de branco para pardo ou preto”, diz.

“As mudanças de preto para pardo e de branco para pardo dizem respeito à fluidez da classificação racial. Já a passagem do preto para branco é mais complicada. Imagino que seja um problema no preenchimento. E de branco para preto é um indicativo de fraude”, afirma Rodrigues.

Janusz afirma que evitar fraudes na autodeclaração é “muito difícil”. “Mas acho que, como os dados são públicos, os políticos se tornarão mas cuidadosos ao declarar sua raça. Se eles perceberem que podem ser punidos pelos eleitores, vão parar de fazer isso.”

Janusz considera importante a questão de uma reserva de recursos para negros, mas não pensa ser essa uma solução definitiva. “Isso está resolvendo uma lacuna importante entre brancos e não brancos. No entanto, não acho que seja suficiente.”

Candidatos explicam mudança na raça declarada — Foto: Fernanda Garrafiel/G1

Candidatos explicam mudança na raça declarada — Foto: Fernanda Garrafiel/G1

Mudança de cor?

A raça no cadastro eleitoral de Kelps Lima (Solidariedade), candidato a prefeito de Natal, mudou de branco para preto entre 2016 e 2020. Segundo ele, houve um erro. “Em 2016, foi erro de preenchimento do cadastro. Foi erro do partido. Antes disso, em 2014, eu já estava como preto. E depois, em 2018, também.”

Lima também afirma que a sua autodeclaração não tem relação com a decisão do TSE, já que ele se declarava como preto em eleições anteriores. Além disso, diz que abriu mão do fundo eleitoral no atual pleito. “Anunciei nas minhas redes sociais há 30 dias que não vou usar o fundo eleitoral. Está publicizado”, diz. “Minha declaração não tem relação [com a cota]. Me declaro [preto] desde 2014.”

O vereador Caio Miranda (DEM), de São Paulo, que teve o registro alterado de branco para pardo, também afirma que na sua declaração racial de 2018 sua raça já constava como parda.

“Esse preenchimento na Justiça Eleitoral é feita pelo partido. É burocrática e não é dada muita atenção pra isso. Em 2016, ficou branca porque o partido preencheu, não fui eu”, diz.

“Mudei [para pardo] em 2018. Eu mudei, inclusive, porque meus pais me deram bronca porque estava branco. [Perguntaram se] estava negando minhas raízes. Imagina, o partido que preencheu. No meu caso, é questão de reconhecer. Meu pai é pernambucano, nordestino. Tem ascendência preta, indígena e até judia. Minha família por parte de pai tem a pele mais próxima de pardo e preto, e minha mãe é branca. É uma questão de identidade mesmo”, diz o vereador.

“Em 2018, já mudei, e mantive para 2020. Nao tem nada ver com cota. (…) Tem site me colocando como se fosse oportunista. Não tem nada a ver.”

O vereador afirma, porém, que não se enxerga como homem negro. Segundo classificação do IBGE, os pretos e pardos formam os negros no Brasil. “Nós trabalhamos mal a questão da identidade racial no país”, diz.

“Eu acho legítimo eu me considerar pardo, mas não me considero negro, por exemplo. Não acho certo eu me apropriar da luta. Embora eu possa sofrer de racismo. Quando eu era mais novo, tomava sol e a pele ficava mais bronzeada, e meu cabelo era bem crespo. Então, dependendo do contexto social, já sofri racismo.”

Candidato à reeleição para a Câmara Municipal de São Paulo, Adilson Amadeu (DEM) também alterou o registro de branco para pardo. Mas, segundo sua assessoria de imprensa, a mudança foi “um equívoco de preenchimento de cadastro” e gerou “um estresse no gabinete”.

“Nós já pedimos para o partido alterar esta informação, mas queremos deixar claro que não tem relação com cota ou fundo eleitoral”, afirma.

Já o vereador Eliseu Kessler (PSD), que também busca a reeleição na Câmara do Rio, mudou de pardo para branco. “Não tive a intenção de mudar os dados. Preenchi a ficha atual de forma automática e sem consultar a anterior.”

Metodologia

O levantamento do G1 foi feito a partir da base de candidatos mais atualizada disponível no TSE, com 316.673 candidatos. A de 2016, completa, tem 498.302 candidatos. Cruzando as bases pelo CPF, foi possível localizar 102.462 candidatos que concorreram em ambas as eleições. Foi verificada a informação, então, de quais mudaram a raça declarada de uma eleição para outra. O número encontrado (25.991) representa 25% do total. Não foram considerados os candidatos com o rótulo “sem informação” em raça/cor.

G1 também fez um cruzamento de candidatos que participaram do pleito de 2018 e concorrem agora em 2020. Foram identificados 6.088 candidatos que aparecem nas duas bases de dados. Do total, 1.438 candidatos mudaram de cor. Novamente o maior grupo foi o dos candidatos que se identificavam como brancos e passaram a se identificar como pardos (518).

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